Última alteração: 2025-05-25
Resumo
a) Iconografia Musical em fluxo: criação, produção, circulação e recepção de imagens relativas às culturas musicais e seus modelos; dinâmicas de transculturação, hibridação, contaminação, contágio; relações entre centro, margens, periferia.
A subcultura Goth, movimento surgido no final da década de 1970 no Reino Unido, englobando uma variedade de expressões como música, moda, artes visuais e comportamento, reaproveitou diversos elementos daquilo que se convencionou chamar de cultura clássica ou erudita. Sobretudo, destaca-se, pela evidente semelhança de nomenclatura, a influência da literatura gótica dos séculos XVIII e XIX. Entretanto, o contato com outras manifestações foi também relevante para a construção estética e ideológica dessa subcultura, alguns exemplos são: o aspecto onírico da pintura pré-rafaelita, a proximidade com o punk e, até mesmo, a sua conexão com alguns movimentos de vanguarda que buscavam ressignificação, como o Dadaísmo ou o Informalismo. Assim, através dessa peculiar união de elementos, extrai-se um coletivo com visuais improvisados de inspiração na Era Vitoriana, um comportamento que busca desafiar certas normas culturais e de gênero, e uma música que, superando o punk, não exprime propriamente raiva perante o status quo da pós-modernidade vivenciada, mas uma reflexão intelectualizada, melancólica e introspectiva a respeito de sentimentos como amor, luto, solidão e nostalgia. Dessa forma, compreende-se que o Goth emergiu dessas influências não pela proposta de desmonte cultural e volta ao primitivismo, mas porque vindo do estranhamento apareceram atitudes estéticas com características sombrias e um claro retorno aos aspectos obscuros do Romantismo literário e visual. (Goodlad & Bibby, 2007, p.1).
Sob o impulso do Goth, uma destas variantes, que se valeu do onírico para estabelecer um clima de transe numa embalagem melancolicamente deleitável, foi a proposta da banda escocesa Cocteau Twins (Schraffenberger, 2007, p.126). Apesar de “os músicos envolvidos, em muitas situações, não estarem de acordo com a associação com o termo Goth, que eles consideravam como uma conveniência jornalística mal aplicada” (Shuker, 2008, p. 157), são notáveis as referências de características dessa expressão no programa criativo do grupo e até mesmo a sua influência no que viria a ser chamado de Goth posteriormente.
O principal traço que distingue o Cocteau Twins é a busca por uma sonoridade adjetivada como etérea, celeste e espacial, ou em suas próprias palavras “música com a energia punk, porém, mais delicada e bela, e aquele som brilhante do Phil Spector.” (Cocteau Twins, Official website), elementos esses, que vão na contramão da ambientação dark promovida por outros artistas do rock Goth. Na elaboração desse repertório foram utilizados diversos recursos composicionais e estéticos para a obtenção de tal resultado, dentre eles, destacam-se: a utilização de palavras pouco inteligíveis e mimologias nas melodias cantadas por Elizabeth Fraser, vocalista da banda; e, sobreposições de guitarras contendo uma variedade de distorções por meio de efeitos produzidos através de uma pedaleira da marca Boss (Cocteau Twins, Official website) ou amplificadores modificados, performados por Robin Guthrie, principal arranjador de instrumentos.
Contudo, essa sonoridade levou algum tempo para se desenvolver dentro do panorama composicional do conjunto. Apesar de já apresentar inclinações para uma paisagem sonora distinta desde o início da carreira, foi apenas em seu terceiro álbum de estúdio intitulado Treasure, de 1984, lançado pela gravadora 4AD, que essas características puderam ser externadas de forma realmente perceptiva e expressiva.
Nesse sentido, a elaboração da capa do disco, produzida pela empresa de design 23 Envelope, é uma obra visual que busca transmitir de forma bastante categórica a identidade pretendida pelo Cocteau Twins. Nessa imagem, observa-se um ambiente com pouca iluminação, um possível recorte de tecido ao fundo, um busto moulage (tipo de “manequim” utilizado por alfaiates para costura) de modelagem feminina e um véu ornamentado translúcido que cobre parte da peça. Toda a composição dos elementos parece aludir a um tipo de ateliê de costura, que, juntamente do filtro monocromático aplicado à fotografia, dá impressão de um cenário antigo e misterioso, proposta estética que lembra diretamente a ambientação dos romances góticos.
Dessa forma, a presente comunicação propõe uma análise iconográfica da concepção da capa do referido álbum. Como base teórica principal para esse estudo, será utilizada a teoria de Erwin Panofsky (1976). A justificativa para utilização desse material está na percepção prévia de que, no material artístico produzido no fim do século XX, sob uma orientação pós-moderna, há uma recuperação de elementos típicos da cultura de tradição clássica e erudita ocidental. Entretanto, faz-se necessário um estudo metodológico e fundamentado para que se possa, de fato, estabelecer como essas manifestações foram resgatadas do passado e como se traduzem na contemporaneidade.
Assim, serão abordados os pontos de contato mais específicos que ligam a produção literária dos séculos XVIII e XIX à subcultura Goth dos anos de 1970, consequentemente, ao grupo Cocteau Twins e como esses aspectos vieram a se transpor visualmente em Treasure. Nessa continuidade, também serão exploradas as relações dos elementos musicais e paisagens sonoras promovidas pelo conjunto em confronto com a visualidade da arte de capa e outros elementos estéticos do LP. Para isso, serão analisados comparativamente outros trabalhos da 23 Envelope, tendo em vista que eram responsáveis não somente pelo grupo supracitado, porém, por toda a identidade visual da gravadora 4AD e outras bandas, álbuns e compilações a ela associadas. Nesse sentido, se buscará compreender o processo criativo da dupla Vaughan Oliver e Nigel Griergson, os principais colaboradores da empresa de design, e, de que forma, ou se havia de fato algum tipo de colaboração do Cocteau Twins dentro do projeto da concepção imagética do disco.
Logo, a partir do referencial bibliográfico proposto, será aplicado o método de Panofsky para interpretar a imagem da capa do disco, associando à análise de aspectos musicais relevantes contidos em Treasure, assim como a verificação de semelhanças com os aspectos literários e visuais de expressões artísticas do século XIX e a produção do Cocteau Twins.
Bibliografia:
Goodlad, Lauren & Bibby, Michael. Introduction. In Goth: undead subculture. Durham/London, 2007
Panofsky, Erwin. 1. Iconografia e Iconologia: Uma Introdução ao Estudo da Arte na Renascença. In Significado nas Artes Visuais. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1976
Scharaffenberg, Rebecca. The modern Goth (explains herself) in Goth: undead subculture. Durham/London, 2007
Shuker, Roy. Popular Music Culture - The key Concepts. 3. ed. Routledge/Oxon, 2012
Fontes eletrônicas:
https://cocteautwins.com/ Acesso em 27 de março de 2025.