Última alteração: 2025-05-25
Resumo
O objetivo desta comunicação é fazer uma apresentação de meu trabalho, e do caminho metodológico que vem sendo utilizado para conceber a idéia da tortura musical e de sua representação na arte.
Quando iniciei o empreendimento acadêmico sobre a iconografia musical no Inferno de Hieronymus Bosch (1450-1516), assunto de minha tese de doutorado ainda em curso, deparei-me com bom volume de materiais acerca do pintor (ainda que não houvesse informações completas sobre sua vida), seu estilo e suas peculiaridades, sendo este visto como um criador de quimeras e monstros em seus trabalhos. Contudo, no que concernem os assuntos ligados à tortura musical, elemento recorrente na obra de Bosch, observei escassez de materiais e métodos de análise que se encaixem nos objetos a serem estudados. A única autora a mencionar especificamente este assunto na iconografia da arte flamenga é Marie Louise Hertzfeld-Schild, que registrou como iconografia da tortura musical apenas trabalhos posteriores a Bosch (detalhe em um painel de Pieter Bruegel; detalhe numa gravura de Johann Wierix). Desta forma, nosso escopo investigativo tem lançado mão de materiais e métodos de análise que vão de encontro à disciplina da tortura musical, que atualmente é um assunto de vanguarda em estudos acadêmicos musicológicos contemporâneos, mas com nosso olhar para o passado, para a iconografia do passado mais precisamente.
É relativamente complexo falar em pesquisa da iconografia da tortura musical, quando a própria abordagem da tortura musical como um campo de estudo só começou a ser explorada nas últimas décadas. A musicóloga Anna Papaeti é um dos nomes mais relevantes na pesquisa da música e violência, bem como as especialistas Susan Cusick e Juliane Brauer, que passam a estudar e classificar a violência sonora e musical, como um tipo de tortura camuflada, que tem potencial para abarcar males físicos e psicológicos de peso em suas vítimas. As pesquisas contemporâneas deste campo fazem uso de relatos de prisioneiros de guerra em vários pontos do mundo, dentre os quais, prisioneiros em campos de concentração nazistas, prisioneiros de regimes de ditaduras e em campos de detenção estadunidenses da Guerra ao Terror, por exemplo.
Observando a seriedade das pesquisas acerca do campo da tortura sonora/musical, baseamos nossa busca pela metodologia para analisar os painéis flamengos cuja temática é composta por elementos musicais, em que a função dos músicos e dos seus sons é a de atormentar os personagens ali representados, ou mesmo, representar a música, como um potencial agente de disseminação do pecado, e que fere os princípios da “harmonia” celestial.
Uma das conexões que temos abordado para a pesquisa da iconografia da tortura musical é o tema da zombaria, como forma de humilhação e escárnio. Alguns dos mais notórios enredos sobre os escarnecedores músicos na arte encontram-se em representações de personagens bíblicos, a começar pelo próprio Cristo. O ato de zombaria à Jesus descrito no Novo Testamento ocorre em três estágios, o primeiro durante o julgamento de Cristo no Sinédrio (Marcos 14:65; Lucas 22:64; Mateus 26:67), o segundo estágio após a condenação diante de Pôncio Pilatos (Marcos 15:17; Mateus 27: 27-29) e o terceiro já crucificado (Marcos 15: 31; Lucas 23: 36-37; Mateus 27:42). Neste ínterim a pesquisadora Gabriela Currie possui estudos dessa iconografia na arte bizantina, em que destaca os elementos musicais nas diferentes representações da Zombaria de Cristo em afrescos dos séculos XII e XIII em igrejas bizantinas.
Na linha da representação do escárnio, citamos os painéis flamengos das Aflições de Jó, ou, Zombaria de Jó. A narrativa bíblica conta a história de Jó, que era um homem justo, fiel a Deus, e com vasta riqueza. Num dado momento, como descrito no Livro de Jó, Deus chama Satanás para admirar a lealdade de seu servo Jó, mas Satanás, observando os rebanhos e fartura de Jó, sinaliza que este só é fiel porque Deus continua a abençoá-lo. É neste ponto que Deus, em acordo com o Diabo, permite que este venha a infligir toda sorte de desgraças à vida de Jó, sua família e seus bens (Livro de Jó, Capítulos 17 e 34). Este recorte bíblico foi então utilizado por Hieronymus Bosch e outros artistas, caracterizados como seus seguidores, colocando o na narrativa das pinturas os grupos de músicos que atormentam o personagem central, Jó, em seu ápice de aflição.
Contudo, é nas obras dos Juízos Finais de Hieronymus Bosch que observamos a representação da violência musical de forma irrefutável. Nos ambientes infernais dos retábulos boschianos, em plenas sentenças e condenações aos pecadores, em consequência do Juízo Final, encontram-se as cenas de tortura musical.
O sentido da pesquisa é o de compreender a violência sonora como um possível fator de tortura, pois, assim como outras representações de punição nos infernos de Bosch são recebidas com pavor e medo pelos espectadores, uma aflição musical forçada e eterna também seria atormentadora. E a outra questão para o fundamento da pesquisa é que de fato esta atividade da tortura musical era praticada no tardo medievo, porém sem maiores registros, além dos já citados pela própria autora Hertzfeld-Schild, e por Bosch, em seus infernos. A lógica é que, as torturas propostas em imagens pelo pintor, seriam um prelúdio visual do que o pecador receberia após a morte, fazendo uso de dores e males que eram conhecidos e praticados em seu tempo. Não há razão, então, para excluir a violência musical ofertada pelo inferno, como possibilidade de aflição real no ambiente em que se encontram.
Ao fim, as torturas, continuam sendo torturas, em qualquer tempo. O olhar do espectador ao se deparar com tais experiências representadas é universalmente de repugnância, pois, a sensação de dor é empaticamente coletiva. E neste modelo, Bosch não apenas demonstra a dor física como um fator, mas insere o efeito do tormento psicológico eterno, que a tortura musical/sonora propicia habilmente.