Porventura uma das mais conhecidas formas artísticas do Japão, as estampas ukiyo-e correspondem a gravuras produzidas a partir da impressão em blocos de madeira previamente esculpidos e impregnados de tintas (Harris 2010), que representam o quotidiano vibrante da sociedade japonesa do periodo Edo (1603-1868) e inícios do Período Meiji (1868-1911). O termo é formado pela junção de duas palavras: ukiyo, literalmente traduzido como “mundo flutuante”, era originalmente um termo budista referente à natureza efémera da vida e experiência humanas, implicando a não satisfação dos desejos pessoais e, consequentemente, a total adesão ao natural correr da vida. Na sociedade hedonista do Periodo Edo, o significado original de ukiyo reconstruira-se para passar a designar o carpe diem, o desfrutar o mais possível dos prazeres mundanos da vida, precisamente pelo mesmo caráter efémero (Marks, 2010, p. 9). Já o segundo termo, e, corresponde a “gravura, imagem, pintura”.Este “mundo flutuante” visto pelos artistas incluía não apenas representações das atividades dos bairros de entretenimento, mas também paisagens naturais e urbanas, guerreiros famosos, mitos e lendas e clássicos da literatura, passando por temas representativos da história do território (Davis 2021; Harris 2010; Marks 2010)). Numa sociedade pautada pela rigidez hierárquica, mas economicamente dinâmica devido à rápida urbanização, um crescente número de mercadores e artesãos começa a dispor de meios financeiros para usufruto de inúmeras atividades de entretenimento, quer como consumidores, quer como intervenientes ativos na produção de nova cultura popular, escrevendo e editando poesia e compondo gravuras editadas em livro (Harris 2010). As estampas ukiyo-e surgem, pois, da necessidade de resposta às exigências próprias de publicitação das várias formas de entretenimento e de promoção desse mesmo entretenimento como produto distintamente local, tomado como souvenir real ou imaginado dos momentos passados por entre o ukiyo (Davis 2021; Harris 2010). Por outro lado, como forma artística de massas, o objeto tratado nas gravuras do ukiyo seria ditado por preferências, e padrões de consumo, tornando-se gradualmente um meio privilegiado para o surgimento de novas tendências na moda e no entretenimento, assim como a definição de códigos comportamentais e de valores que quebravam e simultaneamente minetizavam a estrutura social fora do “mundo flutuante” (Paulino 2023; Davis 2021).Na profusão de temáticas, a música surge como meio de experienciação direta ou indireta do ukiyo, sobretudo via retratos de atores e cenas do teatro Kabuki – um dos principais temas das estampas e formas de entretenimento do Japão Feudal – mas também como complemento visual a outras atividades (Binns 2013). Neste contexto, surgem não poucas vezes representações de mulheres músicas tocando instrumentos como o banjo shamisen ou a cítara koto, envolvidas pelo meio natural mas, sobretudo, pela atmosfera intimista das habitações, casas de chá ou bordéis onde, como gueixas ou cortesãs, entretinham e animavam a clientela. Como um dos principais géneros visuais dentro do ukiyo-e, o bijinga (literalmente, “gravura de belas mulheres”) desempenhou um papel fundamental na consolidação de um ideal de feminilidade associado à sensualidade, sofisticação e domínio das artes. Por forma a corresponder aos interesses do potencial patrono ou cliente ideal do bairro de entretenimento, a jovem mulher recebia de uma rigorosa educação artística, que incluía a música, a dança, a poesia e a caligrafia, tornando-se não apenas um objeto de desejo, mas também uma figura intelectual e artisticamente culta, acessível, nalguns casos, apenas a um restrito grupo (Yasutaka 2000).Nas estampas bijinga, a representação da dimensão musical não revela apenas o caráter funcional, como entretenimento, desta arte; ela é invocada também como canal privilegiado de destaque do virtuosismo artístico e de caráter da figura feminina aspirando a uma mudança na sua condição social, quer via promoção na hierarquia à qual pertencia dentro do mundo flutuante, quer pela adoção e inserção numa família de estatuto elevado. Apesar das rígidas convenções confucianas reguladoras do estatuto da mulher na sociedade do Japão Feudal, o potencial de transcendência de classe ou ascensão de carreira era avidamente almejado por jovens raparigas e suas famílias, tendo a música, nomeadamente a prática do koto e, sobretudo, do shamisen, um papel crucial na demonstração da elegância culta da mulher e na consequente captação da atenção de potenciais patronos (Tanimura 2011).Se, no bijinga, se observa o potencial de mobilidade da prática musical, nos retratos de atores (yakusha-e) intérpretes de personagens femininas onnagata, é visível a dupla noção de estereotipagem e fluidez de género. Por um lado, o gradual estabelecimento de convenções e técnicas de performance (kata) e o rígido processo de formação de um onnagata, que incluía a observação do comportamento feminino e a vivência quotidiana como se de uma mulher se tratasse, contribuiriam para a formação de uma imagem idealizada do feminino quer na aparência exterior, quer nas formas de agir, pensar e sentir. Esta feminilidade ganha nova dimensão nos yakusha-e, onde toda e qualquer característica masculina do onnagata de dissolve na representação de um corpo totalmente feminino, ao estilo bijinga (D’Almeida 2017). Por outro lado, a necessidade de aprendizagem e treino rigoroso na aquisição do trato e personalidade do género oposto denota que, mais do que algo inatas, as características de género podem ser aprendidas e emuladas via prática repetida (Isaka 2023). Através do refinamento e aperfeiçoamento técnico, buscava-se uma representação mais autêntica e subtil do feminino no teatro (Leiter 2000), potenciador do desejo masculino e da admiração pela aparência ou caráter virtuoso do público feminino.Partindo desta reflexão, e dada a importância das estampas ukiyo-e no panorama artístico do Periodo Edo e do Japão ao longo da sua história, torna-se essencial refletir sobre o modo como música e género se interligavam visualmente nestas estampas, e o que nos dizem estas representações sobre o papel da arte musical no reforço e/ou distorção de assunções estereotipadas de género. Centrada numa análise iconográfica e organológica de estampas presentes em coleções portuguesas e internacionais, a presente comunicação propõe uma exploração introdutória do seguinte conjunto de questões:Que indicadores visuais e simbólicos presentes nos ukiyo-e permitem identificar as dinâmicas de género nas práticas musicais e teatrais, e de que forma estas representações contribuem para a compreensão dos papéis atribuídos a homens e mulheres na sociedade Edo?De que forma as representações iconográficas dos instrumentos e práticas musicais nos ukiyo-e – em particular a atribuição do shamisen e de outros instrumentos ao género feminino e a representação dos atores kabuki onnagata – contribuíram para a construção e consolidação de estereótipos atribuídos ao género feminino na sociedade japonesa feudal?Ainda praticamente inexplorado na academia, o estudo iconográfico da relação entre mulheres e música na estampa japonesa revela-se de enorme relevância para a compreensão das dinâmicas sociais e culturais do Japão Feudal. A análise de codificação visual da música neste tipo de gravuras permite não apenas a identificação de práticas e géneros musicais distintivos de ideais de género e classe, mas sobretudo a reflexão em torno do papel da mulher no desenvolvimento e disseminação da cultura musical da época. Além disso, a visualidade própria das estampas ukiyo-e, como reflexo de conceções estéticas e sociais do periodo em análise, permite-nos compreender os processos de construção e transmissão de ideais de feminilidade e estatuto social, assim como o contributo da música no desenrolar dos mesmos.
Referências:
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Pinto, Graça Mendes, Beatriz Dantas, and Sofia Campos Lopes, eds. 2024. O Teatro Kabuki e a Estampa Japonesa: Tradição e Transição. Lisboa: Fundação Oriente.
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Yasutaka, Teruoka. 2000. ‘The Pleasure Quarters and Tokugawa Culture’. In 18th Century Japan, edited by C. Andrew Gerstle, 3–32. London: Routledge.