Última alteração: 2025-05-25
Resumo
Este estudo propõe uma abordagem teórica, especulativa e sensível sobre a possibilidade de compreender estátuas urbanas como dispositivos sonoros imaginários. A partir da pergunta “que som teria uma estátua?”, investiga-se um deslocamento da escuta musical tradicional para o campo expandido da iconografia sonora urbana. As estátuas, mais do que objetos fixos e silenciosos, são interpretadas aqui como corpos que evocam ritmos, silêncios, atmosferas e presenças acústicas, ressoando memórias e afetos muitas vezes esquecidos no espaço público.
A pesquisa se ancora no conceito de paisagem sonora, proposto por R. Murray Schafer (1997), para quem cada ambiente carrega uma identidade acústica própria, sendo possível escutá-lo como narrativa histórica e cultural. Essa escuta expandida, por sua vez, ganha profundidade com a filosofia sonora de Salomé Voegelin (2010), que defende o som como gerador de realidades sensíveis, mesmo quando inaudível, permitindo imaginar, interrogar e reconstruir o que se cala. Assim, propõe-se que esculturas feitas de pedra, bronze ou concreto sejam compreendidas como partituras visuais tridimensionais. Seus gestos, materiais, formas e localizações tornam-se códigos poético-sonoros: um braço erguido pode sugerir uma nota suspensa; a rigidez do corpo, um silêncio denso; o desgaste do tempo, um ruído latente.
A proposta é atravessada pela linguagem da composição musical contemporânea. Compositores como John Cage (1912-1992), Philip Glass, Rodrigo Cicchelli Velloso, Hermeto Pascoal e artistas sonoros indígenas ou periféricos oferecem caminhos estéticos e políticos distintos de tradução entre forma e som. A escuta aleatória que Cage propôs poderia ser aplicada aos ruídos urbanos que cercam as esculturas; Cicchelli propõe uma escuta imersiva da presença temporal e material das figuras, por meio de música mista e instalações sonoras; Hermeto talvez “tocasse” a estátua, extraindo som de sua matéria; já artistas sonoros de comunidades periféricas poderiam convertê-las em caixas de ressonância para narrativas insurgentes, reapropriando seus significados em chave contra-hegemônica.
Nesse contexto, as estátuas são também pensadas como corpos entre o humano e o não humano, figuras que representam, vigiam, silenciam ou provocam, mesmo imóveis. Esse olhar permite um paralelo com dispositivos tecnológicos, como robôs ou inteligências artificiais, que também ocupam funções simbólicas e representacionais. Ambos desafiam as fronteiras entre presença e ausência, fala e silêncio, memória e arquivo. Se a estátua pode ser entendida como um “ouvido imóvel”, a IA pode ser vista como uma “escuta automatizada”. A convergência entre escultura, voz e código convida a uma nova leitura da cidade como palco de relações híbridas entre o visível e o audível, entre o passado e o presente, entre o real e o imaginado.
Embora ainda sem fundamentação empírica, este trabalho se configura como uma cartografia especulativa para uma iconografia sonora urbana. Em vez de apenas documentar sons ou representar imagens, propõe-se escutar as estátuas como agentes de memória acústica simbólica. Elas não produzem som, mas evocam o que foi silenciado, o que foi ouvido e o que ainda pode ser escutado.
Conclui-se que esta proposta não é um exercício de fetichização tecnológica da arte pública, mas um convite poético e crítico à escuta. As estátuas passam a ser compreendidas como mediadoras entre o tempo e o som, espaços de ressonância simbólica onde o passado se rearticula em forma sonora. Nesse sentido, a cidade torna-se uma partitura coletiva em disputa, e cada estátua, um ponto de escuta possível para os ruídos históricos e afetivos da vida urbana.